Tuesday, September 14, 2004

O Nuno

Eu tenho um amigo chamado Nuno. O Nuno teve um acidente com uma arma de fogo, aos 18 anos, e ficou tetraplégico. O Nuno trabalhou comigo durante algum tempo, recordou-me a canção (que não ouvia há anos ...) composta em memória de Che Guevara e é uma das pessoas mais inteligentes e bem humoradas que conheço. O Nuno é atleta de alta competição, de natação, e não aceitou, como ele diz, "ser um coitadinho". O Nuno está en Atenas e participará nas provas de 50 metros costas e 200 metros livres.
Tenho orgulho em dizer que sou amigo do Nuno. E, como português, tenho orgulho nos outros 40 atletas. Todos eles se recusaram a ser coitadinhos.
Em abono da verdade, coitadinhos foram os que não tiveram a boa vontade e a solidariedade de, num país de cavaleiros, emprestar um cavalo ao Carlos, tendo que ser os ingleses a fazê-lo. Coitadinhos são uns que empenharam perto de €200.000 numa equipe de futebol de vedetas bacocas e mimadas que nos envergonharam nos "outros" jogos e deixam os atletas deficientes sem apoios. Coitadinhos são os governantes e dirigentes que tanto gostam de aparecer como apoiantes do desporto e tratam os atletas deficientes como cidadãos de segunda e um fado que não querem transportar.
Felizmente, ainda há pessoas que não querem ser, apesar de tudo, coitadinhos.
AR

Monday, September 13, 2004

Esquecimentos

O Governo, pela voz do seu brilhante primeiro-ministro, tratou de informar o país que pretende rever a aplicação das taxas moderadoras nos hospitais públicos, passando a adoptar o princípio de que quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos e quem não tem nada não paga.
Eu devo dizer que concordo, genericamente, com o princípio. Entendo que todos pagarem o mesmo quando as suas realidades económicas são diferentes não é justo. Mas tenho para mim que o ilustre Dr. Santana Lopes se esqueceu (por lapso, certamente) de anunciar na mesma altura a reforma do sistema fiscal e tributário.
E esqueceu-se (digo eu) porque ele sabe, como todos nós sabemos, que a actual situação fiscal do País é uma farsa. Como é possível fugir ao pagamento dos impostos e aldrabar as declarações fiscais, como não há fiscalização tributária a sério nem se investigam os sinais exteriores de riqueza, como o sigilo bancário permite a fuga e a fraude fiscal, como as empresas apresentam prejuízos anos a fio e, estranhamento nem fecham as portas nem são investigadas, como se concedem excepções e benefícios fiscais às maiores empresas, que mesmo sem essas excepções já apresentariam lucros avultadíssimos (e ainda bem que assim é, para bem de todos os que lá trabalham), enfim, como o nosso sistema tributário é mais ou menos o mesmo (digo eu) que o do Burkina Faso, o nosso digníssimo Primeiro-Ministro, como pessoa de bem e homem que pondera nas questões e que, com toda a certeza, se encontra rodeado por gente competentíssima que sabe o que está a fazer, só se pode ter esquecido de, antes de falar em mudança das taxas, falar da reforma fiscal.
AR

Tuesday, September 07, 2004

O Senhor é o meu pastor; nada me faltará *

Há cinco dias, 32 homens (e mulheres?) invadiram uma escola e fizeram reféns mais de 1000 pessoas. Dois dias depois, pelo menos um terço dessas pessoas estavam mortas. O Senhor é o meu pastor; nada me faltará.
Dos perto de 400(?) mortos, pelo menos metade eram crianças. E adolescentes. 200. O Senhor é o meu pastor; nada me faltará.
Todos os anos morrem milhões de crianças. De fome. Por todo o mundo. O Senhor é o meu pastor; nada me faltará.
Todos os anos, outros milhões de crianças morrem de SIDA, Malária, Lepra, Tuberculose, em terras esquecidas por todos, excepto pela Morte. O Senhor é o meu pastor; nada me faltará.
Todos os anos milhões de crianças são maltratadas, violadas, traficadas para trabalho escravo ou prostituição. O Senhor é o meu pastor; nada me faltará.
AR

* Sl 23:1

Monday, September 06, 2004

Não vale, não

O al(maria)do escreve, neste texto, que agora vale tudo. Eu permito-me discordar.
O que se passou em Beslan não foi um acto político nem uma reclamação sobre nada. Foi um crime, inadjectivável, equivalente aos de Nova Iorque ou Madrid, Iraque ou Palestina.
Agora, mais do que nunca, não vale tudo. E não vale tudo porque nós (e nós somos todos os que, por nenhum momento, tenta justificar, ainda que ligeiramente, este tipo de actos) somos infinitamente melhores do que eles. Porque nós não fazemos com os filhos deles o que eles fazem com os nossos. Nem com os velhos deles. Nem com os doentes deles. Nem com as mulheres deles. Nem, em última instância, com eles.
Por isso, para nós, nunca valerá tudo.
AR

Thursday, September 02, 2004

Imagens

Nota prévia: sou favorável à liberalização do aborto. Não porque entenda que a mulher tenha um direito absoluto sobre o seu corpo, ou porque cada um deve fazer o que lhe der na real gana, ou por este ou aquele argumento que normalmente se esgrime na praça pública.
Eu sou favorável à liberalização do aborto porque, por regra, um aborto é a solução menos má para um drama que alguém enfrenta num determinado momento da sua vida e quem o faz tem o direito de o fazer com apoio e cuidados médicos.
As pessoas têm uma grande tendência para esquecer ou ignorar o que não lhes interessa. E normalmente ignoram e esquecem as crianças que morrem de fome, e as deficientes com problemas irreversíveis que as impedirão, sempre, de ser mais do que vegetais, e esquecer os abusos e violência a que as crianças são sujeitas bastas vezes por não serem queridas nem desejadas.As contrário do meu amigo CC, não coloco aqui fotografias para ilustrar o que disse acima, porque entendo que a discussão se faz com argumentos. Mas para que conste, um feto como os mostrados no blog dele impressiona-me infinitamente menos do que a imagem de uma criança a morrer de fome com um abutre à espera.
AR

Wednesday, September 01, 2004

A Nau Catrineta

Eu tenho andado muito calado, a observar esta história do barco. Mas como parece que a novela não vai acabar, também venho dar o meu palpite.
Tenho para mim que isto é mais um número de circo do que outra coisa qualquer.
Por um lado, debate a sério não se faz com barcos que têm contentores transformados em clínicas ginecológicas. E muito menos estando à espera que os outros lhe ponham um nome. Quando os que são contra o aborto conseguem ser eles a pôr o nome no barco está tudo estragado. Mais vale o barco ir embora porque agora ele é o Barco do Aborto. E este tipo de rótulo não ajuda nada à causa de quem teve a ideia de o ir buscar.
Por outro lado, a atitude do Governo é ou estúpida ou descuidada. Qualquer das opções me parece má. O barco não vem, evidentemente, ameaçar a soberania nacional. Se lá se podem ministrar medicamentos que provoquem posteriormente o aborto e isso ameaça a soberania nacional, então acho que é melhor o Sr. Ministro da Defesa e dos Assuntos do Mar preparar-se para uma tarefa ciclópica: fiscalizar os consultórios de todos os ginecologistas do país que possibilitam que as suas clientes abortem nas primeiras semanas de gestação. E prepare-se para prender muita gente.
Tudo tinha sido bem melhor se o Governo não tivesse tido um arremedo de autoridade. Falava-se do barco no dia em que chegasse e no dia em que se fosse embora. O barco tinha feito chegar a sua mensagem, o Governo tinha evitado fazer a figura triste que fez e nós tínhamos sido poupados a duas semanas de um patético número de circo.
AR